Como integrar contoterapia com outras terapias psicológicas
- 10 de nov.
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Quando as histórias encontram a psicologia, algo fundamental se revela. Integrar contoterapia com outras terapias psicológicas significa compreender que o ser humano se transforma pela razão, mas também pela imaginação. A contoterapia nasceu do encontro entre tradição oral e escuta terapêutica, ampliando o olhar sobre o que acontece quando símbolo, corpo e emoção convergem.
As histórias estabelecem pontes naturais com diversas abordagens psicológicas porque operam em um campo simbólico que atravessa diferentes epistemologias. Cada escola encontra nelas um modo próprio de integrar a contoterapia ao seu trabalho clínico, seja através do arquétipo, da metáfora, do vínculo ou da presença. Vamos ver abaixo alguns exemplos, embora não todos, dessas possíveis integrações.
Como integrar contoterapia com outras terapias psicológicas na prática clínica e simbólica
Psicologia Analítica e o poder transformador do arquétipo
A contoterapia compartilha da compreensão de Carl Gustav Jung sobre o inconsciente que se expressa por imagens e arquétipos. Para Jung e continuadores como Marie-Louise von Franz, Erich Neumann e Clarissa Pinkola Estés, o símbolo funciona como ponte viva entre consciente e inconsciente.
Von Franz afirmava que os contos de fadas são a forma mais pura de expressão dos processos psíquicos coletivos. A contoterapia reconhece essa natureza arquetípica, mas vai além da análise. Enquanto a psicologia analítica busca compreender o símbolo, a contoterapia o sustenta na experiência viva da narrativa. A transformação emerge quando alguém se vê refletido dentro da imagem, sem necessidade de interpretação prévia. O símbolo atua primeiro, a compreensão vem depois.
Psicanálise e o inconsciente em linguagem simbólica
A psicanálise sempre se interessou pelas narrativas como via de acesso ao inconsciente. Sigmund Freud via nos mitos esse caminho, e Bruno Bettelheim mostrou como os contos infantis simbolizam conflitos internos universais em sua obra A Psicanálise dos Contos de Fadas. Diana e Mário Corso exploraram o poder dos contos na formação da subjetividade, apontando que mitos e fábulas oferecem imagens para aquilo que a linguagem racional não alcança.
Sylvio Lincoln Saikovitch de Almeida, colaborador da obra Contoterapia: bases teóricas e narrativas do cuidado, aprofunda essa perspectiva ao propor o conto como mediador entre corpo e psique. Trata-se de uma linguagem simbólica que reorganiza conteúdos inconscientes de maneira não invasiva, através da oralidade e da escuta sensível.
Muitos lacanianos contemporâneos têm se aproximado da contoterapia por reconhecerem nela um campo fértil de trabalho com o significante. O conto funciona como cadeia simbólica que provoca deslocamentos de sentido. Na contoterapia, esse deslocamento atravessa o corpo, a voz e o silêncio, operando simultaneamente nos registros imaginal e discursivo.
Donald Winnicott e o espaço potencial da narrativa
Para Donald Winnicott, a saúde emocional depende da capacidade de brincar, um espaço intermediário entre realidade e imaginação onde o sujeito se sente livre e seguro para criar. A contoterapia opera nesse mesmo território. O campo narrativo se configura como esse espaço potencial, um lugar onde a pessoa pode experimentar imagens internas sem ser invadida ou julgada.
Contar e ouvir histórias torna-se um gesto de sustentação emocional. O tom de voz, o ritmo e o silêncio funcionam como continência. A escuta contoterapêutica é um modo de brincar com a própria experiência e de restabelecer a capacidade de imaginar, um dos fundamentos da vitalidade psíquica.
Abordagens humanistas e o encontro genuíno
A contoterapia se harmoniza naturalmente com a Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa. Os contos servem como meio para explorar sentimentos e facilitar a auto-expressão, enquanto o terapeuta mantém uma postura empática e genuína. As metáforas narrativas permitem que o cliente projete suas próprias questões e encontre significados pessoais, respeitando seu ritmo e sua sabedoria interna.
Nessa integração, a história funciona como catalisadora de awareness (consciência/presença), favorecendo o contato com emoções e sensações que pedem reconhecimento. O trabalho gestáltico com polaridades encontra nos personagens e situações dos contos um material rico para exploração.
Terapia Cognitivo-Comportamental e metáforas terapêuticas
No campo cognitivo-comportamental, especialmente em abordagens de terceira onda como ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso), as histórias têm sido utilizadas como metáforas terapêuticas. Os contos ilustram padrões de pensamento alternativos através dos personagens e suas jornadas.
Essa integração permite trabalhar crenças disfuncionais de forma menos confrontativa, usando as narrativas para promover desfusão cognitiva. O cliente pode observar seus próprios padrões através da distância segura que a história oferece, facilitando insights e mudanças comportamentais.
Terapia Sistêmica e a teia invisível dos vínculos
A abordagem sistêmica compreende o sujeito como parte de uma rede viva de vínculos. A contoterapia dialoga profundamente com essa visão ao oferecer histórias que tornam visíveis as dinâmicas relacionais. Um conto sobre reconciliação pode representar simbolicamente a restauração de um vínculo interrompido, sem necessidade de expor fatos concretos ou nomear pessoas.
Essa integração aparece em constelações familiares narrativas e grupos reflexivos, onde o conto media simbolicamente o campo relacional. Em vez de explicar o sistema, a história permite senti-lo. E sentir é o primeiro movimento para reorganizar. Os padrões familiares, lealdades invisíveis e exclusões ganham forma através dos personagens e situações narradas, oferecendo ao grupo um espelho coletivo onde cada um reconhece algo seu.
Terapias Narrativas e a construção de significados
As Terapias Narrativas, desenvolvidas por Michael White e David Epston, partem de uma epistemologia construcionista, acreditando que a identidade é formada pelas histórias que contamos sobre nós mesmos. A contoterapia se diferencia ao partir da experiência simbólica que antecede a linguagem conceitual.
Enquanto a Terapia Narrativa busca reautorizar o sujeito a contar sua história sob novas perspectivas, a contoterapia oferece imagens que permitem sentir essa mudança antes de nomeá-la. As duas abordagens convergem na valorização da narrativa, mas a contoterapia reconhece o símbolo como realidade psíquica viva, atuante por si mesma.
Arteterapia e terapias expressivas
A integração com arteterapia e terapias expressivas amplia as possibilidades de elaboração simbólica. Após trabalhar um conto, o cliente pode desenhar, pintar ou criar colagens sobre a história, expressando aspectos que não consegue verbalizar. Pode também reescrever finais alternativos ou criar continuações, trabalhando soluções criativas para seus conflitos.
Essa combinação é particularmente potente porque ativa diferentes canais expressivos, permitindo que o símbolo se desdobra em múltiplas linguagens.
Psicodrama e a dramatização do simbólico
Na integração com psicodrama, a contoterapia pode anteceder ou complementar a dramatização. O cliente encena elementos do conto que ressoaram com suas questões, explorando conflitos internos de forma lúdica e segura. Os personagens da história se tornam papéis a serem vivenciados corporalmente, ampliando a consciência sobre dinâmicas psíquicas. Principalmente se essa sessão for seguida de um momento de reintegração simbólica proposta pela contoterapia.
EMDR e processamento de experiências traumáticas
Contos metafóricos podem preparar o terreno para o processamento de traumas através do EMDR, criando distância segura antes de trabalhar memórias difíceis. Após sessões de processamento, histórias ajudam na consolidação e ressignificação das experiências trabalhadas, oferecendo novas imagens para integração.
Hipnoterapia Ericksoniana e o transe narrativo
Milton Erickson utilizava extensamente metáforas e histórias em seu trabalho. Os contos induzem naturalmente estados de transe leve, contornando resistências conscientes e facilitando sugestões terapêuticas indiretas. A contoterapia se beneficia dessa compreensão ao trabalhar com o ritmo, a voz e a presença como indutores de estados receptivos.
Mindfulness e presença narrativa
Práticas de mindfulness podem encontrar no conto uma via de presença. A escuta atenta de histórias promove atenção plena e ancoragem no momento presente. As narrativas podem ilustrar conceitos como aceitação e compaixão, ajudando o cliente a observar pensamentos e emoções sem identificação excessiva.
Ludoterapia e o brincar simbólico
Com crianças, os contos se integram perfeitamente ao brincar terapêutico. Fantoches, encenações e jogos baseados nas histórias facilitam a expressão emocional e elaboração de conflitos através do lúdico. A criança encontra nas narrativas espelhos para suas vivências internas, podendo processá-las em segurança.
Abordagens somáticas e corporais
A integração com psicoterapias corporais reconhece que a história ressoa no corpo antes de ser compreendida pela mente. Após trabalhar um conto, explora-se as sensações corporais que ele evocou. Personagens podem representar tensões ou bloqueios somáticos, e movimentos inspirados na história facilitam liberação emocional e reorganização psicofísica.
Terapia do Esquema e padrões relacionais
Os contos ajudam a identificar esquemas iniciais desadaptativos de forma menos ameaçadora. Personagens podem representar diferentes modos do esquema, e as narrativas ilustram padrões relacionais problemáticos junto com caminhos possíveis de mudança. A distância oferecida pela história permite reconhecer padrões sem ativar excessivamente as defesas.
Abordagem existencial-fenomenológica
Na perspectiva existencial-fenomenológica, o conto se torna um modo de descrever o fenômeno humano sem reduzi-lo a conceitos fixos. As histórias revelam estruturas existenciais como liberdade, finitude, solidão e sentido, permitindo que essas questões sejam vivenciadas e exploradas em profundidade.
A ética da integração e o cuidado com os limites
Integrar contoterapia com outras terapias psicológicas requer rigor ético e clareza de papéis. Essa orientação, presente na obra Contoterapia: bases teóricas e narrativas do cuidado, parte da compreensão de que a contoterapia é uma prática simbólica e relacional, cuja força está na escuta e não na intervenção direta sobre o inconsciente.
Por isso, pode ser conduzida por profissionais de diferentes formações, desde que atuem dentro dos limites de sua competência e respeitem o território clínico das terapias psicológicas.
Quando conduzida por psicólogos ou outros profissionais da saúde mental, a contoterapia se integra naturalmente ao processo terapêutico, ampliando o cuidado com a dimensão simbólica e imaginal das narrativas. Nesse contexto, o conto pode ser usado como recurso de expressão, reflexão e elaboração, sem perder o rigor técnico que sustenta o trabalho clínico.
Já quando conduzida por contoterapeutas que não atuam no campo clínico, o foco se volta para o campo simbólico da escuta. O trabalho consiste em criar condições para que a história atue por ressonância, favorecendo a autorreflexão e o fortalecimento interno.
Esses profissionais não diagnosticam, não interpretam processos inconscientes específicos nem conduzem intervenções clínicas. Seu papel é sustentar o campo narrativo com presença e cuidado em contextos educativos, culturais ou de desenvolvimento humano, respeitando as fronteiras éticas de sua atuação.
Essa distinção entre campos se apoia na ética da alteridade, inspirada em Emmanuel Levinas e Martin Buber, que colocam a relação como fundamento do humano. Nessa perspectiva, o outro não é um objeto a ser compreendido, mas uma presença diante da qual nos tornamos responsáveis. Cuidar, nesse sentido, é escutar sem invadir, sustentar o espaço simbólico e confiar no tempo da história.
O contoterapeuta não impõe sentido nem interpreta o vivido. Ele cria as condições para que cada pessoa encontre o seu próprio significado, preservando o mistério e a liberdade que tornam o processo simbólico verdadeiramente transformador.
A dimensão simbólica da psicologia
A integração entre contoterapia e outras abordagens psicológicas amplia as possibilidades de cuidado. Reconhece que existem saberes que se expressam antes da linguagem conceitual e continuam atuando quando as palavras encontram seus limites. Cada história cria um espaço de ressonância onde emoção, pensamento e corpo podem se realinhar.
Psicólogos que buscam integrar a contoterapia a outras terapias psicológicas relatam que as narrativas complementam seus recursos técnicos, oferecendo uma via de acesso mais suave e menos defensiva para conteúdos difíceis. O conto não substitui outras ferramentas terapêuticas, mas se soma a elas, ampliando o repertório de linguagens disponíveis no processo de cuidado.
O resultado dessa integração é um trabalho que dialoga com diferentes dimensões da experiência humana, respeitando tanto o rigor das abordagens psicológicas quanto a sabedoria ancestral das narrativas que atravessam gerações e culturas.
Abraços,
Anna Rossetto




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