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A Imaginação Mítica


Nas minhas andanças pelo mundo dos contos, aqui nessa terra tão conectada com a cultura celta, ouvi sobre o trabalho de uma escritora, psicóloga e mitóloga que publicara livros tão potentes quanto o famoso Mulheres que Correm com Lobos da Clarissa P. Estes.


Mitologia celta?


Obviamente me interessei, tanto por isso quanto por uma sempre existente atração por trabalhos mais longe dos holofotes. Sharon Blackie é seu nome. Em sua brilhante palestra no Tedx Talks, ela nos fala sobre A Imaginação Mítica. Sua capacidade de colocar pontos importantes do mundo das histórias em tão poucos minutos é surpreendente e inspiradora. Tomei a liberdade de traduzir livremente minha compreensão da mesma para compartilhar por aqui - essa não é uma tradução literal ok - para inspirar você e sua consciência sobre os mitos pelos quais vive.


Para assistir sua palestra na íntegra é só acessar aqui.


Os Mitos e o Nosso Lugar No Mundo.


Por sermos seres conectados as histórias, é por meio delas que começamos a extrair e construir significados do mundo ao nosso redor. Elas são quase como as estrelas que usamos para navegar desde os tempos antigos. As lições que tiramos delas podem ser significativas, ricas, profundas, memoráveis; ouro nem sempre é um bom objetivo, sempre há uma porta para um outro mundo se aprendermos a procura-las, nunca nunca tente se mutilar para caber em sapatos de cristal que foram feitos para outra pessoa, sempre deixe um trilha de pão para achar a saída da floresta e também muito importante, nunca tire sua pele e a deixe sem vigilância.

Os personagens dessas histórias podem ser grandes ferramentas de aprendizado para nós. O enredo dessas histórias trazem as tarefas que esses personagens precisam passar, mas também nos mostram as tarefas cujas quais nossa alma passa na vida. Essas histórias nos mostram diferentes maneiras de sermos/estarmos no mundo, um mundo que é de fato rico em encantamento. E desde tempos imemoriais nós nos reunimos ao redor da fogueira, em cabanas ou em palácios reais para contar histórias uns aos outros sobre como o mundo veio a ser e sobre o nosso lugar nele. Essas histórias são conhecidas como mitos.

Mitos são histórias com um certo peso pois elas explicam a natureza, falam sobre deuses, sobre heróis e por conta dessa característica explicativa, essas histórias sustentam crenças e valores morais das civilizações de cujas quais surgiram, quase como se fossem narrativas guias pelas quais vivemos. E todas as civilizações tem suas mitologias, sendo que essas narrativas não são apenas religiosas, elas também podem ser seculares.


Tipos de Narrativas.


Os tipos de narrativas que encontramos nessas histórias que mais sustentam a maneira como enxergamos nossa civilização hoje em dia seriam: O mito do “mais”, o mito do progresso. Mais mais mais. Essas narrativas nos falam que cada geração precisa ter ou acumular mais do que a geração anterior. Precisa-se ter casas maiores, trabalhos melhores, carros mais potentes, tem que viver mais, ser mais bonito. Elas nos dizem que precisamos produzir mais coisas o tempo todo e que precisamos consumir essas coisas, porque, ao fazermos isso, aparentemente, seremos mais felizes e mais saudáveis e se não fizermos isso a economia vai parar de crescer e quem sabe as terríveis coisas que podem acontecer. Então ficamos de certa forma presos nessas estranhas histórias distópicas onde os personagens são consumidores e assim esses personagens são definidos por aquilo que compram. Poderíamos dar um passo atrás e nos perguntar se são essas as histórias que realmente gostaríamos de estar, se não preferiríamos mergulhar mais profundamente na fonte daquilo que já temos ao invés de remar na parte mais rasa.


O próximo seria o mito do herói: O mito do herói está um tanto quanto amarrado ao mito do “mais”, porque, um pouco diferente dos heróis de épocas passadas, os heróis atuais não são apenas sobre ser o melhor que eles podem ser, mas sobre serem melhores do que as outras pessoas. E é fácil de perceber isso, principalmente em mitos com super heróis, pois todos querem ser mais poderoso, mais especial do que o restante das pessoas. Todo mundo deseja ser um Harry Potter, quem desejaria ser um trouxa? E isso é o resultado de uma narrativa subjacente em nossa cultura que nos encoraja a ser individualista, competitivo e a querer sempre mais de tudo.


Histórias Pós-Heróicas.


Então, como seria uma história “pós-heróica”? Como seria se pudéssemos encontrar uma história que nos una mais profundamente no mundo ao invés de uma história que nos coloca acima, fora, olhando para o mundo a partir de um lugar de privilégio? As histórias pós-heróicas são sobre aprender a viver de forma mais profunda no mundo que temos agora. Não é sobre individualidade e competição. É sobre construir comunidade e reconhecer diversidade. Nas histórias pós-heróicas não se quer matar o dragão, mas sim, trazer ele para fazer parte do time com suas habilidades únicas de cuspir fogo. É o tipo de narrativa que você vive uma história com seu estômago metade vazio pois assim você dá metade da sua comida para o rato faminto e por consequência, lá na frente, o rato pode vir e te ajudar a separar o joio do trigo. Nessas histórias não se vai direto para conquistar a mão da princesa de cabelos dourados, não, nelas você se levante e encara o terrível javali de rosto azul ou você beija a bruxa fedorenta. Não são histórias sobre mais, são histórias sobre quando você tem o suficiente. Não são sobre competição, são sobre compaixão, como a busca pelo Graal nas lendas arturianas onde o cavaleiro precisa fazer uma pergunta para conseguir obter o Graal, curar o ferimento do Rei Peixe e para curar a terra inculta e seca na qual o mundo havia se tornado.


E a pergunta na história é simples, “o que lhe aflige?”. E tanto faz a resposta nessas histórias pós-heróicas, não é sobre a resposta, é sobre saber fazer as perguntas corretas de compaixão. São essas histórias que nos passam valores mais enriquecedores pelos quais viver. A questão é que a maioria de nós não pensam em progresso e heroísmo como algo que sustenta uma certa cultura mitológica. Até porque não é realmente nos apresentado dessa forma, na verdade, nos apresentam não como uma história que podemos escolher, mas sim como o mundo realmente é.


Acontece que, como o mundo realmente é de acordo com essas mitologias de “mais”, de progresso, de heroísmo, só é realmente bom para as pessoas mais ricas e poderosas no planeta. Essa mitologia cultural não é particularmente boa para os outros milhões de pessoas que passam fome e tampouco para os animais abatidos ou extintos, porque afinal de contas, se pararmos para analizar, essas mitologias fundamentais, essa mitologia “guia”, esta literalmente nos custando o planeta.


Além do planeta, essas mitologias também não nos beneficiam tão pouco, pois embora claramente temos mais “riqueza” que as gerações anteriores, Desajustados Míticos. E veja, os mitos pelos quais cada um de nós vive, os nossos mitos pessoais, as histórias que contamos sobre nós e nosso lugar no mundo, na verdade são histórias nascidas e vividas dentro dessa estrutura cultural mitológica.


Então se a mitologia guia da nossa cultura é rica e nutritiva, ela nos inspira e nos trás significado mas se nossa mitologia se torna árida e sem coração então nós nos tornamos alienados e cruéis. Se você já não vive mais pela mitologia cultural padrão, as histórias que as gerações anteriores contaram sobre si mesmas, se você acha que isso é falho, inadequado, então de certa forma você caiu para fora do mito. E cair fora do mito é cair fora do sentido, porque mito é acima de tudo sobre sentido.


Mudança começa primeiramente com imaginação, com imaginação mítica, com a habilidade de imaginar histórias que são melhores, histórias que nos ajudam a ver o nosso lugar no mundo de outra maneira, que nos entrelaçam e nos enredam de volta a teia da vida ao invés daquelas que nos fazem olhar tudo de cima ou de fora. Se o mito que sustenta a nossa cultura está falhando conosco vamos transformá-lo. Por que não? Humanos sempre foram criaturas criadoras. Jung uma vez disse se a mitologia de uma cultura está morrendo, se provando inadequada para as necessidades das pessoas e do planeta então o poder de fazer mitos reside nos indivíduos. Que o nascimento de um mito individual na imaginação dessa pessoa ou grupo de pessoas pode literalmente se espalhar e mudar o mundo.


Assim, são esses “desajustados míticos” que dão o pontapé inicial para a transformação cultural, pois eles re-imaginam histórias que nos ajudam a nos apaixonarmos pelo mundo de novo. Histórias que encantem a nós, aos nossos filhos, ao mundo. Quando o fogo ardente de uma civilização começa a morrer, algumas poucas chamas individuais permanecem. E quando essas chamas recebem um pouco de ar, quando nos debruçamos sobre elas e as assopramos, elas podem começar um novo fogo. Com as faíscas do nossa própria imaginação mítica, vamos ascender esse fogo de novo.


 

Contoterapia.


Para mim essa palestra foi um chamado de presença, um farol, um incentivo para seguir firme com o trabalho de incentivar a criação de histórias por aqui, além, claro, das habilidades orais necessárias para esse ofício. Estar na ponta onde como contoterapeutas criamos um conto, onde nossa imaginação é criadora, é tão importante quanto estar na ponta da imaginação como criatura que recebe um conto pronto para trabalhar. Porque sim, precisamos desenvolver nossa capacidade de criar novos mitos que sirvam ao mundo que queremos viver.

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